terça-feira, 18 de maio de 2010

A TERRA DE TODAS AS CRISES - Capítulo Primeiro: A Percepção da Crise

Para Camila, que é filhotA de Almodóvar e que numa noite besta compartilou da idéia.

" Até agora, a cidade só pode ser o terreno de batalha da liberdade histórica, e não o lugar onde esta liberdade se realizou. A cidade é o espaço da história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possivel a empreitada histórica e consciência do passado."
Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo


A crise deveria ser a mãe de todas as novidades e a inimiga violenta e impiedosa da obviedade. Paul Morel estava certo de que em qualquer experiência, individual ou coletiva, a crise era necessária. Pois que era da natureza da crise a insegurança movediça, a dúvida, o medo, a acomodação das energias em um novo lugar, formando um novo desenho. Era, talvez, por esta razão, que compreendia as crises como algozes das velhacarias das quais as certezas estavam plasmadas e como um harém de amantes apaixonadas, gulosas e docemente gentis das novidades, das originalidades, das criações.

É importante dizer, aqui, no começo, de antemão, que Paul Morel flerta ingênuamente e de maneira reticente com as crises suas e do mundo. Uma destas criaturas para as quais não convém pedir opinião sobre nada, sob o risco da honestidade da resposta, o que sempre beira uma precária civilidade, dado que a civilização sustenta-se em mentirinhas bem educadas, sútis hipocrisias.

Vai ao cinema ou ao teatro e não tem dificuldade em adivinhar as falas das personagens antes que elas sejam verbalizadas. Estava inscrito nos gestos, ele choraminga, com um certo tédio. Encontra um amigo desconcertadamente bebado em um bar e, ao comprimentá-lo, informa de antemão a razão de sua angústia, antes que o bebado desabafe. Uma amiga chega e lhe fala misteriosamente sobre um novo amor e ele lhe fala o nome do rapaz e o contexto da descoberta. Uma mulher o abraça e pede o seu amor e ele nega, lhe informando tudo o que irá acontecer - da mágia da paixão e das dores do desencontro.

As pessoas geralmente entram em crise com as coisas inesperadas da vida. A obviedade do mundo era, para Paul Morel, a sua grande crise, o seu porre sem ressaca e, por não ter a capacidade de ignorar a chatice ele havia também tornado-se um chato profissional.

Ali, naquela terra da Boca do Monte, como em todos os lugares do mundo naqueles dias, vivia-se em crise. Crise da família, do trabalho, das artes, do capital, do Estado, das gerações, de identidade, dos sindicatos ... Aquela terra era terra movediça e, naquele lugar, estranhamente, eram tempos de poucas perguntas e nenhuma resposta, até mesmo para Paul, que já estava cansado de respostas, quem dirá de perguntas.


Era inverno e Paul Morel estava mais uma vez em frente ao seu computador escrevendo e bebendo vinho enquanto procurava nas pessoas que conhecia, nos livros que lia, nos discos que ouvia, nas lembranças das coisas que vivera alguma pista para a pergunta que a anos lhe importunava e, especificamente, naquela madrugada bebada, lhe provocava náusea e rancor. Se as crises eram a base das novidades, das criações, porque naquela terra da Boca do Monte o velho mal-humorado teimava em não morrer e o novo era covarde e não dava o sorridente ar da graça?
Acendeu um cigarro e reclinou-se na poltrona, admirando a fumaça decolar verticalmente até espatifar contra o teto horizontalmente, formando desenhos de nuvens que lhe lembravam o cogumelo de uma explosão nuclear. Uma bomba atômica, pensou, é uma invensão adorável, pois apesar da destruição que provoca, exige criações originais, ou pelo menos pobres de obviedade.
- Depois de uma bomba atômica não há outra opção que não seja criar algo novo! Uma explosão atômica detona todas as velhacarias!
Antes de cair no sono, sem solução alguma, olhou seus All Star's sujos e pensou em ir até o centro da cidade jogar conversa fora e, quem sabe, inventar uma paixão boba para lhe fazer companhia naquela madrugada fria. Primerio avaliou que já era velho para usar All Star's. Depois, que havia desligado o celular a três dias e que não era dificil imaginar aonde seus amigos estariam, podia mesmo vê-los em sua imaginação: estavam todos sentados em algum dos bares de sempre, no Cristal ou no Garça, bebiam alegremente alimentando um estranho e saudável dom de rir de suas próprias tropeçadas e das tropeçadas alheias; ou estariam trancados em um apartamento, falando compulsivamente sobre política e as desgraças da vida.
Pensou que aquela mulher dos cabelos de fogo que a meses se mudara para dentro de sua cabeça também estaria por lá. Chegou mesmo a ensaiar mover-se da poltrona, mas antes que se concentrasse o suficiente para isso, concluiu que ela também poderia estar em casa, dormindo, ou em um quarto qualquer, bem acompanhada. De qualquer forma, já era madrugada e, caso o telefone estivesse ligado, sabia que ela ligaria entre a meia noite e meia e a uma da manhã, como sempre, sem falar muita coisa e esperando que ele dissesse algo que ele nunca dizia. Depois confessaria que os diálogos eram sempre bizarros e desligaria gentilmente. Era sempre assim e ele sentia-se cansado.
Naqueles dias as obviedades lhe causavam agonia, e calculando que se tinha a capacidade de imaginar com um certo grau de certeza onde todos estariam e o que faziam, concluiu que não havia motivo algum para ligar o celular, levantar da poltrona, calçar seus All Star's ou sair de casa. Em verdade, estava tão cansado emocionalmente que não conseguia mover-se, nem mesmo se a casa inteira pegasse fogo ou uma bomba atômica rasgasse a noite, arrebentando as pontes, as certezas, os prédios e o tédio em zilhões de pedaços.


A pergunta, ele sabia, estava mal colocada. Pois que a idéia de crise pressupunha a existência de uma ordem anterior a ela, estática, harmônica. Ao mesmo tempo, ainda que dentro da obviedade das coisas, a vida era mudança, transformação.
De qualquer forma, naquela terra, vivia-se as crises e delas nada nascia, nada brotava que não escapasse da obviedade, do previsível - daí a náusea e o rancor que, naquela madrugada bebada, lhe embreagavam mais do que o vinho.
Naquela noite, na poltrona, como quem ganha uma esmola do destino, Paul Morel sonhou, ainda que como um desenho animado em preto e branco. Há pelo menos 5 anos não sonhava. De alguma forma, aquele lugar, aquela terra, havia lhe provocado um distânciamento tal de si mesmo, de sua personalidade e de sua subjetividade, que sentia não ter mais a capacidade saudável de ter sonhos ou delírios.
Vivia os dias, de maneira tal, que nem mesmo tinha a lembrança deles ou de sua falta. A recordação de um sonho bom ou de um pesadelo simplimente lhe era um sentimento estranho.
Pelo menos até aquela noite, quando sonhou com a origem das crises de Ybiroty Retan.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Mais uma teoria ... de boteco!

Na divina claridade que você se iluminou
O calendário seria um dia de cada cor
Futuro é como eu queria
Te cobiçar ventania
Num romance de amor
E a lua ainda mais clara
Queria escutar tua falar, com palavras de amor ...
Fagner


Ele bebia e me falava
Que a razão toda de sua angústua
Era uma certa mulher de fato interessante
Destas femeas docemente sarcásticas, de humor refinado
E com um certo charme intelectual combinado com um belo corpo
FATAL, ele me dizia
-FATAL!

A questão toda era que a tal moça andava a furnicar com um escroto

Eu pensei na situação, e dei o veredicto:

- Veja, todo ser humano, uma hora ou outra, sente uma estranha e passional necessidade de afirmar-se. Afirmar-se sobre outro ser humano. Deixe a moça afirmar-se, ela vai perceber esta escrotidão uma hora ou outra.

Depois, pensando bem
E avaliando que a coisa toda estava a gerar uma angústia desbaratada
(OBSERVAÇÃO: poucas coisas são mais tristes que uma mulher interessante com um escroto ...)
Senti a necessidade de dissipar aquela dúvida
E, sabendo que para males do amor, nada melhor que um processo de desconstrução do objeto do desejo
Tomei a iniciativa

-É verdade. Não podemos ficar parados diante de tal disparate! Pegue uma caneta com o garçom, vais escrever um bilhete, FATAL!

E eis que veio, assim, quase que espontaneamente, a ...


TEORIA NÚMERO 4. 975

DIGA-ME QUE MALA SEM ALÇA CARREGAS QUE PERCEBERÁS A MALA QUE ESTÁS A TE TORNAR!

domingo, 14 de março de 2010

Sobre o desejo, o tempo e o espaço


Ela me conta sem certeza tudo que viveu
Que gostava de politica em 1976
E hoje dança no Frenetic Dancing' Days
Ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz e com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração e têm dado muito amor
Espalhado muito prazer e muita dor
...
Como é bom poder tocar um instrumento!
Caetano
No principio
As portas e as janelas estavam todas abertas
Era uma questão de tempo
Paciência ...
O tempo, é provável, mais do que alimente, torne o desejo uma espécie de obrigação
Um rito necessário
Um assassinato de todas as bruxas
Depois
As portas e as janelas estavam todas fechadas
Já não havia mais tempo, os tempos eram outros
Tempos de frivolidades sadias ...
Primeiro era o espaço sem tempo
O acaso todo foi, em um tempo sem espaço
E eu ficava ali, matutanto, como todo teimoso
Pensando em como abrir aquelas janelas, aquelas portas
Entrar casa a dentro, inventar um novo espaço
Mas eis que sempre há, em um lado ou outro, uma nova frivolidade ...
Os tempos e os espaços são inimigos fatais dos desejos!

sábado, 16 de janeiro de 2010

O livro de receitas da vovó reacionária e o viaduto Otávio Rocha

" A industrização brasileira não encurtou o abismo entre pobres e ricos. Os senhores viraram empresários, mas continuam a viver novas versões da casa grande. Os escravos viraram trabalhadores assalariados, mas continuaram morando na senzala, em dormitórios feitos para isolar o pobre depois do serviço. Nos anos 90, aprendemos que, em sessenta anos de industrizaliação, o Brasil havia gerado três categorias sociais - ricos, pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe uma minoria rica, branca, sofisticada, formando uma sociedade mais ou menos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa, resignada, do tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros que o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase inimiga".


Hebert de Souza.


O jornal Correio do Povo está preocupado com a imagem de Porto Alegre. Na matéria "Moradores de rua tomam um viaduto e o vão do INSS", publicada no dia 13 de janeiro, assinada pelo editor Luiz Arnim Shusch, lamenta o fato de o viaduto Otávio Rocha, um dos cartões postais da cidade, estar servindo de dormitório para cerca de 15 sem-tetos da capital.
A prefeitura da capital reconhece que "a situação é considerada crônica, pois oferece riscos relacionados à segurança pública e também ao patrimônio histórico do município, como é o caso do viaduto". O secretário de cultura da capital, Sérgius Gonzaga, diz "que a situação deixa uma imagem negativa do Viaduto Otávio rocha, já que reflete desleixo e miséria".
A miséria absoluta vivenciada por uma parte da população não é vista com um problema de segurança alimentar, garantia de trabalho ou moradia adequada, ou mesmo de dignidade humana. A questão da pobreza, para o governo de Porto Alegre e para o jornal, é uma questão de segurança pública e de limpeza urbana.



Fico imaginando o secretário pensando em uma forma de solicionar o "inconveniente". Como acabar com o problema dos sem-teto? A receita é conhecida, está no livro de receitas da vovó reacionária.
Ingredientes: alguns policiais e um camburão; a central de limpeza urbana.
Modo de fazer: com os policiais bata bem nos sem-tetos, até amaciar. Os humilhe, chingue, cuspa, até extrair o pouco que resta de dignidade. Se eles não partirem por livre e espontanea vontade, coloque-os dentro de um camburão e sacuda bem, depois deposite o que restar em um recipiente hermeticamente lacrado.
Feita esta operação, é hora de melhorar a imagem do local. Com a patrulha de limpeza urbana varra, esfregue com água e sabão. Apague qualquer inscrição pichada nos muros. Desinfete.
Pronto, o local esta novamente com ares de civilidade. Chame um fotógrafo, os cidadãos de bem e os turistas e delicie-se com a nova imagem.


O problema, aqui, não é a miséria, mas sim os pobres. Não é inconveniente a miséria existir, desde que ela não apareça muito.
O que é chato é a imagem de desleixo que a miséria trasnmite quando os pobres ousam utilizar os pórticos projetados pelos engenheiros Manoel Barbosa Assumpção e Dulio Bernardi, belamente decorados com as esculturas do alemão Alfred Adolff, com dormitórios, banheiros ou casas.
É bem verdade que a receita não é nova, e pouco criativa. A vovó reacionária copiou de sua bisavó, baronesa tupiniquim carioca, fina dama que acompanhou a transição da colônia para o império: aos senhores brancos, a casa grande, os teatros, os bordéis de luxo e os cassinos. Aos escravos negros, a roça, a senzala.
Com o final da escravidão manteve-se a receita. Para os empresários e a classe média, os centros e os bairros urbanizados. Para os trabalhadores, desempregados e pobres de todo o tipo, as favelas, as casas populares nos lugares distantes dos centros urbanos.
Estão definidos os lugares. Nós aqui, vocês lá.
Cidadãos de bem; moças de família, rapazes de de boa índole, senhoras recatadas. Vagabundos, chinelões, barangas, bagaceiras. Melhor não misturar!
O que o Correio do Povo e o atual governo de Porto Alegre estão a dizer aos moradores de rua é isto: vocês podem ser pobres e descamisados a vontade, desde que vão feder em outro lugar!




quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

FILHOTE DE MACUNAÍMA


Qualquer dia da semana
Um coração vazio se enche de amor
Qualquer dia da semana é primavera
E um coração vazio é um copo que enche
De inverno o eterno furor
De viver
Encher nosso copo corpo quente com luz seduz
Num coração com varanda, vista com vista jardim
E tudo isso cabe num barracão
Lua que fura e ilumina zinco quente
Eu e você, nossas roupas comuns
Iluminadas pela mesma luz de um lampião
Já passou, não passou
Um outro sol



Como um filhote de Macunaíma, escolhi o ventre de uma bugra, enamorada de um descendente de escravos, para aportar por estas paragnes. A título de primeiro manifesto comparti as primeiras impressões das terras vermelhas das missões jesuíticas. Embora o gosto pelos afagos de minha cabocla tenha me levado a saborear o leite de suas tetas até os cinco anos de idade, a facilidade para falar e caminhar me afastou do anti-herói andradiano.



Aprendi a correr cedo, e isso provou esranhos delirios em meu pai. Expressão da negritude, tarado por roda de samba, futebol, História Antiga e pela ácidez de Augusto dos Anjos, este boêmio providênciou a semeadura de meu cordão umbilical aos pés da estatua de Pelé, nas Minas Gerais, em Três Corações. Por um tropeço do destino, cresci com averção ao futebol e, ao invés de chuteiras, ganhei a tradução de Os Lusíadas em meu aniversário de sete anos. Assim, desde muito cedo aprendi a guardar os dentes para "as armas e os barões".




Entre uma estrofe dos sambas de meu pai e uma fornada de pães que minha mãe fazia para dar de comer a mim e a meus irmãos, achei tempo para correr. Corri. Pulei cercas, espiei casais se amando nas sangas, comi toneladas de pitangas e romãs roubadas - que são muito mais doces que as compradas, quem já provou bem sabe!




Corri. Corri para pular o muro da escola primaria, de cachorro brabo de sucata, de tiro de sal de capaz de latifundiário. Corri tanto que uma estranha doença me deixou com dificuldade para caminhar por meses. Passei a caminhar.




Caminhei até a Amazonia. Me banhei no Rio Negro e meu primeiro beijo foi nos lábios carnudos de uma índia linda, que já havia beijado todos, menos eu. Decidiram que não seriamos mais padeiros e, assim, da noite para o dia, viramos cozinheiros. Vi os antigos donos da terra embreagados no porto, leprosos, em palafitas, sem borracha, pau-brasil ou ouro.




Era hora de crescer. Alguém, em algum momento, decidiu que eu seria militar. Embora nem a farda nem o fardo tenham caído muito bem sobre meu esqualido corpo, fui morar em um internato para aspirantes a carreiras das armas, em Porto Alegre - uma cidade simpática, no sul de Pindorama.




Assim, convivi parte de minha infância e a adolecência com os pimpolhos da classe média e da burguesia e fui educado por e para a tecnoburocracia tupiniquim. Aprendi a cortar regularmente os cabelos, mastigar com a boca fechada e a ter uma misto de nojo e medo de gente pobre - todos os valores que, enfim, constituem a "dignidade" dos não-pobres.




Estas más companhias e seus hábitos fizeram com que eu procurasse gente mais interessante nas ruas do Bom Fim. Sente em cada mesa de calçada da Venâncio Aires, entre nas portas luminosas da Oswaldo Aranha e tome banho nu no chafariz da Redenção em uma noite de inverno.




Comprei cigarros a volso no Papillon, tomei uma dose de leite de onça no Bar João e caminhei até Santa Maria.



Inventei que seria professor de História. Quatro anos de curso e saí com muitas dúvidas e algumas poucas convicções.

Amo desesperadamente a existência e pessoas que, como eu, não ficam sentadas e lamuriosas por aí, ressentidas e ofendidas com a própria insignificância. Se que não vivo sozinho neste mundo e, por isso, que é possivel contruirmos um tipo de sociedade em que todos tenham garantidas as condições para a realização pessoal, para a felicidade.

Aqueles que acreditam que um outro é possivel são meus companheiros.

Não acredito no Zodíaco e sou um típico aquariano. As mulheres me tratam com bondade e eu não resisto. Me apego com facilidade e vivo intensamente as pequenas coisas do cotidiano. Uma vez, uma mulher que nasce no inverno beijou meus pés e me chamou de Senhor, e eu prometi a mim mesmo que a amaria para sempre em silêncio. Cinco pessoas, extamente cinco, me conhecem para além da superfície das coisas.

Sou, invariavelmente, um poço de anti-patia e arrogância, mas não é necessário muito esforço para perceber que não sou um mosntro e que reluto em preservar a capacidade de me emocionar com as coisas da vida, em me rebelar contra tudo o que pretende me coisificar.

Acho deprimente a obviedade e não me proponho a vivê-la. Ando compenetrado, ingenuamente malandro, em busca de minha muiraquitã.



O que percebo, vivendo, sentindo, é que todo o dia é um dia de grande ironia. Mas a ironia não me impede de ter clareza de quem e porque são meus companheiros e camaradas e de quem e porque são meus opressores.


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

De um bar ...


Mas a força eu retiro, sugo feito vampiro

De saber que as estrelas também vivem sós

De um cigarro amassado, de uma rua deserta

De outros que até eu posso sentir dó

Da menina dos olhos grandes feito a lua

De uma noite sentindo tua carne crua

E dos bares, das festas

Dos vinhos, serestas

Das mentes infestas de podres horrores

De mil desamores

Do chopp das quatro, deste doido mundo

Ney Lisboa
Eu sentida, travado na minha garganta, um ímpeto quase que incontrolável de dizer a ela que naquele dia, como em tantos outros, estava a perambular pelas ruas e a desviar das cadeiras entre as mesas dos bares deslumbrantemente fêmea, com seus pêlos e sua pele tornando lindos aqueles panos coloridos que ela enfeitava - cada peça, estava claro, colocada estratégicamente sob sua pele negra, em um trabalho minuncioso, que só uma fêmea que pretende despertar desejos sabe manipular. Mas não dizia.
Preciso lhe dizer, ando querendo desesperadamente aquela morena, comentei com uma amiga em comum. Ah! Ela é minha amiga, mas vou lhe dizer, é tão complicada ... Me disse um milhão de bobagens, encenando que tinha algum tipo de pudor que, evidentmente, não existia. Estava louca para dizer.
Que crueldade, pensei comigo mesmo. Seria mais uma destas estórias proto-freudianas e chulamente óbvias da moça com algum tipo de desvio paterno, que precisava da figura de um machão, para invadir-lhe a vida toda, saborear seu cotidiano, adorá-lo nas novidades, até concentrar-se em seus defeitos, até tomá-lo como um completo imbecil e procurar procurar outros cotidianos, novas civilizações?
Pensei se seria mais um destes seres a afetar logo a mim, mais uma vez? Logo a mim, que desde a infância, talvez, provavlmente, também por desvios chulamente óbvios, imaginava que o amor seria algo como que algum tipo de amizade muito da honesta, cheia de admiração, de companheirosmo, temperada com uma boa dose de tesão e passionalidade?
Estaria eu, novamente, diante destas criaturas insatisfeitas com seus cotidianos, com suas vidas, dispostas a fazer uma pequena revoluação pessoal, que se constituia basicamente em explorar novos horizontes, que não eram outra coisa que o cotidiano da vida de outras pessoas que pudessem lhe salvar da mesmice de cada dia, lhe oferecer novas aventuras, satisfações nesta vida maluca que a gente tenta fazer com que não seja uma vida de merda? Estas estas coisas que surgem como um vulcão de originalidade e que, diante da incapacidade de re-invenção do cotidiano, em pouco tempo se tornariam novamente mesmices insuportáveis, cheias de objetos e objetos e objetivos insuportáveis, conversas insuportávies, companhias insuportávies e lugares insuportáveis ...
Ela ficava sentada em minha frente e eram necessárias descrições ao extravasarmos nossos desejos, por vezes permeados pela civilidade ue os bares de lugares machistas exigiam de mulheres que tinham um proprietário e por vezes descarados em olhares que se encontravam, dançavam, codinomes por demais carinhosos e recheados de desejos, e mãos que queriam se encontrar, mas não se permitiam, não se bem sei por urbanidade, ranço católico ou puro medo.
Ela me surgiu assim: falando coisas engraçadas e pitorescas do cotidiano, com os olhos rebolando sexualmente para a direita, enquanto seu rosto se curvava para cima, depois para a esquerda - não demorei a perceber que fazia isso quando pretendia mostrar-se mais fêmea, como se precisasse de tais artificios que, explicitamente à ela, eram completamente desnecessários.
Depois encarnava uma intelectual sarcástica e, mostrando afinidade, gargalhava das imbecilidades dos mortais. Falava-me de livros que leu e discos que ouviu, de autores ou filmes que a haviam tocado profundamente.
E rindo acabava sempre por me falar de como se sentia só e dos planos mirabolantes que andava criando para re-inventar a vida toda em um futuro sempre distante. Eu procurava ficar em silêncio, até onde conseguia, fazendo pequenos comentários no que eu acreditava, estratégicamente, deveria ser um monólogo.
Queria lhe falar de como seus passos, gestos, cheiro, pele e verbo anadavam a hipnotizar-me. Que miragens de seu corpo negro-índio exposto sob minha pele e minha lingua andavam perambulando doce e risonhamente pelos meus pensamentos e sonhos imediatos. Mas continuava em silêncio, por pura conveniência poética.
Aprendi aos poucos que queria conhecer aquela mulher que me surgia casualmente no bar, depois do trabalho, no final das tardes daqueles dias. Mas não conseguia observar racionalmente como ela pretendia se projetar para mim porque o ímpeto guardado na minha garganta era voraz de tal forma que era necessário um esforço descomunal, mamífero, que exigia um certo tipo de controle dos sentidos, dos olhos, das mãos, das pernas, da coluna inteira, que me impedia de ouvir qualquer coisa, anestesiado, criança boba e sedenta que ficava com sua presença.
Preciso ir meu bem, nos falamos amanhã, não é? Eu respondia simplesmente que sim, naquele mesmo bar, no final da tarde, como sempre. Tentava pensar em algo divertido para dizer, mas sem que nenhuma piada que me surgisse espontânea, honesta, pronta. Ela seguia desfilando, arredando as cadeiras entre as mesas e os olhos de homens e mulheres, até tomar a rua.
Eu pensava em sair dali, não havia mais razão plausível naquele lugar, naquele bar. Sairia, encontraria outra mulher, mas logo pensava também que todas haviam se tornado um pouco desinteressantes diante da existência dela.
Trocava de mesa, de País, de linguagem, de civilização. Ouvia e falava sobre política, sobre o que estava lendo ou escrevendo, sobre alguém que estava doente, fudido e mal pago. Acabava por ficar entediado e tomava mais duas cervejas e o cuidado de não demonstrar o tamanho de meu tédio.
Acabava por tomar a rua, inventar uma companhia que perfumasse meu espirito. Ia risonhamente, cheio de amor pela humanidade inteira, por saber que era um macho que, em doses homeopáticas, ia aprendendo um pouco da arte de ser femea também. Saia do bar louco de vontade de tomar um soco no estômago, numa experiência que valesse a pena. Ia caminhando pela rua, feliz e satisfeito por minha condição masculina, em um mundo de machos, acompanhado por uma estranha, para um lugar que não conhecia, experimentar linguagem e pele que não conhecia. Mas era apenas uma questão de tempo. .







Partida



You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall
Show me from behind the wall
Caetano Veloso
Acordei no meio da noite assustado, encolhido em um canto da cama em posição fetal. Depois de meses e noites tranquilas os pesadelos haviam voltado, fulminantes e violentos como antes, deixando os músculos do corpo inteiro doloridos, como se tivesse caminhado quilômetros.
Olhei para o teto, que agora parecia-me de uma vastidão infinita que se projetava sobre mim, embora soubesse que o quarto de hotel era pequeno. Voltei-me assustado para o lado e ela dormia tranquilamente, ressonando levemente, ainda que menos indefesa do que eu naquele momento. Um vago assomo de felicidade tomou conta de mim por saber que ela não havia percebido o meu desespero noturno. Desta vez, pensei, não devo ter gritado ou chorado.
Há décadas conviva com aquele pesadelo brutal. Nele, caminhava amigavelmente, de mãos dadas com uma mulher. Chove e andamos em uma rua suburbana deserta. Há casas padronizadas, chalés azuis, amarelos, vermelhos e marrons, cercados por gramados, e há um clima de simpatia no lugar que nos invade.
Caminhamos e falamos alegremente, nos olhamos com uma ternura infantil e honesta que me causa felicidade e angústia. Sua mão pequena abraça a minha com uma força tal que a angústia desaparece. Sua pele é macia, quente e levemente umida. O medo vai embora, sem deixar rastros, como se nunca tivesse passado por ali.
Pulo a cerca de uma das casas e apanho da grama algumas flores amarelas, destas pequeninas. Coloco entre seus cabelos uma delas. Sinto medo de parecer indelicado ou machucá-la com minhas mãos grandes e meus gestos toscos. Ela me olha profundamente, como se admirasse minha compenetração e me dissesse que não vou machucá-la. Seguimos caminhando. Ela solta a minha mão e corre até a esquina, tira a flor dos cabelos e a mastiga às gargalhadas dizendo que tem gosto de framboesa, me chamando para provar.
Corro, mas antes que eu consiga alcança-la ela começa a chorar. Há sangue em seu rosto e seus braços estão roxos, como se tivesse sido linchada. Ela me pede ajuda, eu corro mais rápido, mas nunca chego até ela.
Levantei da cama e fui até a sacada. É dia. Sentei na poltrona, acendi um cigarro e fiquei espiando seu corpo. Olho fixamente seu rosto, seu ventre, sua respiração. Será que ela viu meu desespero e está fingindo dormir por pena de mim? Morro de vergonha de meus pesadelos e tenho medo de que outras pessoas os descubram, principalmente as mulheres.
Olho ao redor do quarto nossas roupas misturadas. Elas dão ao lugar o colorido de uma loja indiana que é ampliado pelo cheiro pesado e adocicado dos incensos que queimamos na noite anterior. Apanho seu lenço de cabelo, o tecido lilás é macio e tem um cheiro suave que invade meus pulmões e me faz pensar que sou mais feliz depois que passei a encontrar-me com aquela mulher esporadicamente.
Mas, então, pensei, porque os sonhos haviam voltado, logo agora? Olho seus objetos, bijuterias, discos, maquilagem e livros e sei que é uma mulher com um amargo de indignação nos lábios e gestos que a torna uma criatura extremamente interessante. Seria sempre assim, pensei, todas com esta carga de indignação para com a vida, exigindo a invenção da felicidade infinita, como um peso terrível que caia sobre meus ombros e me impedia de pensar ou me mover racionalmente?
Desvincilhei nossas roupas e me vesti. Parei e a olhei fixamente na cama, como que para gravar em minha memória aquele momento. Apanhei Dublinenses, do James Joyce, com o qual a havia presenteado na noite anterior. Meu bem, o teu desejo de satisfação infinita é insuportável para mim. Se eu não sofrer eu não mudo e se eu não mudar eu morro pouco a pouco, porque minha vida é mudança. Me perdoa, te amo.
Não sonho mais.