terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Partida



You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall
Show me from behind the wall
Caetano Veloso
Acordei no meio da noite assustado, encolhido em um canto da cama em posição fetal. Depois de meses e noites tranquilas os pesadelos haviam voltado, fulminantes e violentos como antes, deixando os músculos do corpo inteiro doloridos, como se tivesse caminhado quilômetros.
Olhei para o teto, que agora parecia-me de uma vastidão infinita que se projetava sobre mim, embora soubesse que o quarto de hotel era pequeno. Voltei-me assustado para o lado e ela dormia tranquilamente, ressonando levemente, ainda que menos indefesa do que eu naquele momento. Um vago assomo de felicidade tomou conta de mim por saber que ela não havia percebido o meu desespero noturno. Desta vez, pensei, não devo ter gritado ou chorado.
Há décadas conviva com aquele pesadelo brutal. Nele, caminhava amigavelmente, de mãos dadas com uma mulher. Chove e andamos em uma rua suburbana deserta. Há casas padronizadas, chalés azuis, amarelos, vermelhos e marrons, cercados por gramados, e há um clima de simpatia no lugar que nos invade.
Caminhamos e falamos alegremente, nos olhamos com uma ternura infantil e honesta que me causa felicidade e angústia. Sua mão pequena abraça a minha com uma força tal que a angústia desaparece. Sua pele é macia, quente e levemente umida. O medo vai embora, sem deixar rastros, como se nunca tivesse passado por ali.
Pulo a cerca de uma das casas e apanho da grama algumas flores amarelas, destas pequeninas. Coloco entre seus cabelos uma delas. Sinto medo de parecer indelicado ou machucá-la com minhas mãos grandes e meus gestos toscos. Ela me olha profundamente, como se admirasse minha compenetração e me dissesse que não vou machucá-la. Seguimos caminhando. Ela solta a minha mão e corre até a esquina, tira a flor dos cabelos e a mastiga às gargalhadas dizendo que tem gosto de framboesa, me chamando para provar.
Corro, mas antes que eu consiga alcança-la ela começa a chorar. Há sangue em seu rosto e seus braços estão roxos, como se tivesse sido linchada. Ela me pede ajuda, eu corro mais rápido, mas nunca chego até ela.
Levantei da cama e fui até a sacada. É dia. Sentei na poltrona, acendi um cigarro e fiquei espiando seu corpo. Olho fixamente seu rosto, seu ventre, sua respiração. Será que ela viu meu desespero e está fingindo dormir por pena de mim? Morro de vergonha de meus pesadelos e tenho medo de que outras pessoas os descubram, principalmente as mulheres.
Olho ao redor do quarto nossas roupas misturadas. Elas dão ao lugar o colorido de uma loja indiana que é ampliado pelo cheiro pesado e adocicado dos incensos que queimamos na noite anterior. Apanho seu lenço de cabelo, o tecido lilás é macio e tem um cheiro suave que invade meus pulmões e me faz pensar que sou mais feliz depois que passei a encontrar-me com aquela mulher esporadicamente.
Mas, então, pensei, porque os sonhos haviam voltado, logo agora? Olho seus objetos, bijuterias, discos, maquilagem e livros e sei que é uma mulher com um amargo de indignação nos lábios e gestos que a torna uma criatura extremamente interessante. Seria sempre assim, pensei, todas com esta carga de indignação para com a vida, exigindo a invenção da felicidade infinita, como um peso terrível que caia sobre meus ombros e me impedia de pensar ou me mover racionalmente?
Desvincilhei nossas roupas e me vesti. Parei e a olhei fixamente na cama, como que para gravar em minha memória aquele momento. Apanhei Dublinenses, do James Joyce, com o qual a havia presenteado na noite anterior. Meu bem, o teu desejo de satisfação infinita é insuportável para mim. Se eu não sofrer eu não mudo e se eu não mudar eu morro pouco a pouco, porque minha vida é mudança. Me perdoa, te amo.
Não sonho mais.

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