terça-feira, 18 de maio de 2010

A TERRA DE TODAS AS CRISES - Capítulo Primeiro: A Percepção da Crise

Para Camila, que é filhotA de Almodóvar e que numa noite besta compartilou da idéia.

" Até agora, a cidade só pode ser o terreno de batalha da liberdade histórica, e não o lugar onde esta liberdade se realizou. A cidade é o espaço da história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possivel a empreitada histórica e consciência do passado."
Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo


A crise deveria ser a mãe de todas as novidades e a inimiga violenta e impiedosa da obviedade. Paul Morel estava certo de que em qualquer experiência, individual ou coletiva, a crise era necessária. Pois que era da natureza da crise a insegurança movediça, a dúvida, o medo, a acomodação das energias em um novo lugar, formando um novo desenho. Era, talvez, por esta razão, que compreendia as crises como algozes das velhacarias das quais as certezas estavam plasmadas e como um harém de amantes apaixonadas, gulosas e docemente gentis das novidades, das originalidades, das criações.

É importante dizer, aqui, no começo, de antemão, que Paul Morel flerta ingênuamente e de maneira reticente com as crises suas e do mundo. Uma destas criaturas para as quais não convém pedir opinião sobre nada, sob o risco da honestidade da resposta, o que sempre beira uma precária civilidade, dado que a civilização sustenta-se em mentirinhas bem educadas, sútis hipocrisias.

Vai ao cinema ou ao teatro e não tem dificuldade em adivinhar as falas das personagens antes que elas sejam verbalizadas. Estava inscrito nos gestos, ele choraminga, com um certo tédio. Encontra um amigo desconcertadamente bebado em um bar e, ao comprimentá-lo, informa de antemão a razão de sua angústia, antes que o bebado desabafe. Uma amiga chega e lhe fala misteriosamente sobre um novo amor e ele lhe fala o nome do rapaz e o contexto da descoberta. Uma mulher o abraça e pede o seu amor e ele nega, lhe informando tudo o que irá acontecer - da mágia da paixão e das dores do desencontro.

As pessoas geralmente entram em crise com as coisas inesperadas da vida. A obviedade do mundo era, para Paul Morel, a sua grande crise, o seu porre sem ressaca e, por não ter a capacidade de ignorar a chatice ele havia também tornado-se um chato profissional.

Ali, naquela terra da Boca do Monte, como em todos os lugares do mundo naqueles dias, vivia-se em crise. Crise da família, do trabalho, das artes, do capital, do Estado, das gerações, de identidade, dos sindicatos ... Aquela terra era terra movediça e, naquele lugar, estranhamente, eram tempos de poucas perguntas e nenhuma resposta, até mesmo para Paul, que já estava cansado de respostas, quem dirá de perguntas.


Era inverno e Paul Morel estava mais uma vez em frente ao seu computador escrevendo e bebendo vinho enquanto procurava nas pessoas que conhecia, nos livros que lia, nos discos que ouvia, nas lembranças das coisas que vivera alguma pista para a pergunta que a anos lhe importunava e, especificamente, naquela madrugada bebada, lhe provocava náusea e rancor. Se as crises eram a base das novidades, das criações, porque naquela terra da Boca do Monte o velho mal-humorado teimava em não morrer e o novo era covarde e não dava o sorridente ar da graça?
Acendeu um cigarro e reclinou-se na poltrona, admirando a fumaça decolar verticalmente até espatifar contra o teto horizontalmente, formando desenhos de nuvens que lhe lembravam o cogumelo de uma explosão nuclear. Uma bomba atômica, pensou, é uma invensão adorável, pois apesar da destruição que provoca, exige criações originais, ou pelo menos pobres de obviedade.
- Depois de uma bomba atômica não há outra opção que não seja criar algo novo! Uma explosão atômica detona todas as velhacarias!
Antes de cair no sono, sem solução alguma, olhou seus All Star's sujos e pensou em ir até o centro da cidade jogar conversa fora e, quem sabe, inventar uma paixão boba para lhe fazer companhia naquela madrugada fria. Primerio avaliou que já era velho para usar All Star's. Depois, que havia desligado o celular a três dias e que não era dificil imaginar aonde seus amigos estariam, podia mesmo vê-los em sua imaginação: estavam todos sentados em algum dos bares de sempre, no Cristal ou no Garça, bebiam alegremente alimentando um estranho e saudável dom de rir de suas próprias tropeçadas e das tropeçadas alheias; ou estariam trancados em um apartamento, falando compulsivamente sobre política e as desgraças da vida.
Pensou que aquela mulher dos cabelos de fogo que a meses se mudara para dentro de sua cabeça também estaria por lá. Chegou mesmo a ensaiar mover-se da poltrona, mas antes que se concentrasse o suficiente para isso, concluiu que ela também poderia estar em casa, dormindo, ou em um quarto qualquer, bem acompanhada. De qualquer forma, já era madrugada e, caso o telefone estivesse ligado, sabia que ela ligaria entre a meia noite e meia e a uma da manhã, como sempre, sem falar muita coisa e esperando que ele dissesse algo que ele nunca dizia. Depois confessaria que os diálogos eram sempre bizarros e desligaria gentilmente. Era sempre assim e ele sentia-se cansado.
Naqueles dias as obviedades lhe causavam agonia, e calculando que se tinha a capacidade de imaginar com um certo grau de certeza onde todos estariam e o que faziam, concluiu que não havia motivo algum para ligar o celular, levantar da poltrona, calçar seus All Star's ou sair de casa. Em verdade, estava tão cansado emocionalmente que não conseguia mover-se, nem mesmo se a casa inteira pegasse fogo ou uma bomba atômica rasgasse a noite, arrebentando as pontes, as certezas, os prédios e o tédio em zilhões de pedaços.


A pergunta, ele sabia, estava mal colocada. Pois que a idéia de crise pressupunha a existência de uma ordem anterior a ela, estática, harmônica. Ao mesmo tempo, ainda que dentro da obviedade das coisas, a vida era mudança, transformação.
De qualquer forma, naquela terra, vivia-se as crises e delas nada nascia, nada brotava que não escapasse da obviedade, do previsível - daí a náusea e o rancor que, naquela madrugada bebada, lhe embreagavam mais do que o vinho.
Naquela noite, na poltrona, como quem ganha uma esmola do destino, Paul Morel sonhou, ainda que como um desenho animado em preto e branco. Há pelo menos 5 anos não sonhava. De alguma forma, aquele lugar, aquela terra, havia lhe provocado um distânciamento tal de si mesmo, de sua personalidade e de sua subjetividade, que sentia não ter mais a capacidade saudável de ter sonhos ou delírios.
Vivia os dias, de maneira tal, que nem mesmo tinha a lembrança deles ou de sua falta. A recordação de um sonho bom ou de um pesadelo simplimente lhe era um sentimento estranho.
Pelo menos até aquela noite, quando sonhou com a origem das crises de Ybiroty Retan.