" A industrização brasileira não encurtou o abismo entre pobres e ricos. Os senhores viraram empresários, mas continuam a viver novas versões da casa grande. Os escravos viraram trabalhadores assalariados, mas continuaram morando na senzala, em dormitórios feitos para isolar o pobre depois do serviço. Nos anos 90, aprendemos que, em sessenta anos de industrizaliação, o Brasil havia gerado três categorias sociais - ricos, pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe uma minoria rica, branca, sofisticada, formando uma sociedade mais ou menos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa, resignada, do tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros que o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase inimiga".
Hebert de Souza.
O jornal Correio do Povo está preocupado com a imagem de Porto Alegre. Na matéria "Moradores de rua tomam um viaduto e o vão do INSS", publicada no dia 13 de janeiro, assinada pelo editor Luiz Arnim Shusch, lamenta o fato de o viaduto Otávio Rocha, um dos cartões postais da cidade, estar servindo de dormitório para cerca de 15 sem-tetos da capital.
A prefeitura da capital reconhece que "a situação é considerada crônica, pois oferece riscos relacionados à segurança pública e também ao patrimônio histórico do município, como é o caso do viaduto". O secretário de cultura da capital, Sérgius Gonzaga, diz "que a situação deixa uma imagem negativa do Viaduto Otávio rocha, já que reflete desleixo e miséria".
A miséria absoluta vivenciada por uma parte da população não é vista com um problema de segurança alimentar, garantia de trabalho ou moradia adequada, ou mesmo de dignidade humana. A questão da pobreza, para o governo de Porto Alegre e para o jornal, é uma questão de segurança pública e de limpeza urbana.
Fico imaginando o secretário pensando em uma forma de solicionar o "inconveniente". Como acabar com o problema dos sem-teto? A receita é conhecida, está no livro de receitas da vovó reacionária.
Ingredientes: alguns policiais e um camburão; a central de limpeza urbana.
Modo de fazer: com os policiais bata bem nos sem-tetos, até amaciar. Os humilhe, chingue, cuspa, até extrair o pouco que resta de dignidade. Se eles não partirem por livre e espontanea vontade, coloque-os dentro de um camburão e sacuda bem, depois deposite o que restar em um recipiente hermeticamente lacrado.
Feita esta operação, é hora de melhorar a imagem do local. Com a patrulha de limpeza urbana varra, esfregue com água e sabão. Apague qualquer inscrição pichada nos muros. Desinfete.
Pronto, o local esta novamente com ares de civilidade. Chame um fotógrafo, os cidadãos de bem e os turistas e delicie-se com a nova imagem.
O problema, aqui, não é a miséria, mas sim os pobres. Não é inconveniente a miséria existir, desde que ela não apareça muito.
O que é chato é a imagem de desleixo que a miséria trasnmite quando os pobres ousam utilizar os pórticos projetados pelos engenheiros Manoel Barbosa Assumpção e Dulio Bernardi, belamente decorados com as esculturas do alemão Alfred Adolff, com dormitórios, banheiros ou casas.
É bem verdade que a receita não é nova, e pouco criativa. A vovó reacionária copiou de sua bisavó, baronesa tupiniquim carioca, fina dama que acompanhou a transição da colônia para o império: aos senhores brancos, a casa grande, os teatros, os bordéis de luxo e os cassinos. Aos escravos negros, a roça, a senzala.
Com o final da escravidão manteve-se a receita. Para os empresários e a classe média, os centros e os bairros urbanizados. Para os trabalhadores, desempregados e pobres de todo o tipo, as favelas, as casas populares nos lugares distantes dos centros urbanos.
Estão definidos os lugares. Nós aqui, vocês lá.
Cidadãos de bem; moças de família, rapazes de de boa índole, senhoras recatadas. Vagabundos, chinelões, barangas, bagaceiras. Melhor não misturar!
O que o Correio do Povo e o atual governo de Porto Alegre estão a dizer aos moradores de rua é isto: vocês podem ser pobres e descamisados a vontade, desde que vão feder em outro lugar!